尺八の歴史(ポルトガル語)A história do shakuhachi



A história do shakuhachi

por Rafael Hiroshi Fuchigami

*Texto baseado no artigo: "Shakuhachi: de arma de combate e ferramenta religiosa a instrumento musical", de autoria de Rafael Hiroshi Fuchigami e Eduardo Augusto Ostergren, publicado na Revista OPUS, em 2010.



Resumo: O shakuhachi foi levado da China para as terras japonesas no século VII. Por diversas ocasiões sofreu mudanças em sua estrutura física, tais como alterações no tamanho, número de furos e material utilizado em sua fabricação. Além disso, fez parte de diferentes contextos ao longo do tempo, tendo participado da música de corte gagaku, sendo utilizado como ferramenta religiosa, arma de combate e instrumento musical. A flauta de bambu se particulariza por sua sonoridade rica em harmônicos e pela possibilidade de produzir efeitos sonoros específicos como, por exemplo, o muraiki (explosão de ar) e meri kari (descer/subir a afinação). Este artigo sumariza o desenvolvimento histórico do shakuhachi conforme estudos de Kamisango (1988), Kitahara et al (1990) e Lee (2009) e conclui com uma breve consideração sobre sua presença no Brasil.


Abstract: The shakuhachi flute, originally from China was introduced in Japan during the Seventh Century. On different occasions it underwent changes in its physical structure, such as modifications in size, number of holes, and construction materials. Throughout the times the shakuhachi flute was used on different social contexts, either as a courtly musical instrument as part of the gagaku ensemble, as a religious tool, or as a weapon for personal defense. The bamboo flute has its own peculiar tone qualities because of the rich presence of harmonics and the possibility of producing specific sound effects such as the muraiki (air explosion) and the meri kari (to raise/lower tuning). This article summarizes the historical development of the shakuhachi according to Kamisango (1988), Kitahara et al (1990), and Lee (2009), and concludes with some remarks about its presence in Brazil.


Origens

A história e as características do shakuhachi na forma que atingiu no Japão possui uma conexão mais estreita com os instrumentos vindos da China, mas, no entanto, o rastreamento das origens dessa flauta nos leva a um passado mais distante.  De acordo com Tanabe (1959, p. 25), no antigo Egito havia uma espécie de flauta chamada sebi, feita com haste de cana.  Sua hipótese é a de que este instrumento se propagou até península Árabe, onde ganhou o nome de nay, e posteriormente, durante a expedição de Alexandre, o Grande, chegou até a Ásia Central e Índia ocidental. Na Índia o instrumento foi tocado amplamente por budistas, e juntamente com o budismo encontrou o caminho que o levou à China. Durante todo esse trajeto passou por mudanças estruturais, quanto ao seu tamanho, forma e número de orifícios do seu corpo. O nome shakuhachifoi usado para se referir à nova forma que adquiriu para se adaptar à afinação e padrão de escala utilizada na China. 

Introdução do shakuhachi gagaku no Japão

Por volta do final do século VII, a música de corte gagaku foi importada da China (Dinastia Tang) para o Japão, onde prosperou. Entre os instrumentos que faziam parte do conjunto gagaku constavam o koto (cítara), biwa (alaúde), ryuteki (flauta transversal), hichiriki (instrumento de sopro de palhetas duplas), sho (órgão de sopro de bambu), shakuhachi e instrumentos de percussão. O shakuhachi gagaku começou a entrar lentamente em desuso na China após ser introduzido no Japão, e a partir do século X o instrumento chamado shakuhachi só era encontrado em terras japonesas.

No Templo Todaiji, localizado em Nara, onde se encontra o Daibutsu (maior estátua do Buda no Japão), foram preservados oito exemplares de shakuhachi que ficaram abrigados no Shosoin, um grande repositório construído por volta de 756. Essas flautas possuem seis orifícios e três nós no bambu, embora alguns exemplares foram feitos de jade, marfim ou pedra, mas imitando o formato e os nós do bambu. Provavelmente esses instrumentos preservados no Shosoin foram utilizados na música gagaku. Embora esses exemplares tenham sobrevivido, assim como alguns documentos e crônicas do século VIII e IX que citam essas flautas, não existem manuscritos sobre sua técnica de execução e por isso não podemos saber como eram tocados.

Em meados do século IX a música importada da China e da Coréia já estava consolidada nas ilhas japonesas e passou a sofrer modificações, surgindo assim uma nova estética. Como conseqüência, alguns instrumentos entraram em desuso no conjunto gagaku e o shakuhachi partilhou deste mesmo destino. No entanto, continuou a ser utilizado na corte de alguma outra maneira e até mesmo fora dela. Os escritos Kojidan (“Discussão de assuntos antigos”) de 1215 e Taigen Sho (“Um tratado sobre gagaku”) de 1512 afirmam que o monge Ennin (794 a 864) utilizava o shakuhachi juntamente com o canto do sutra budista Amida Kyo, revelando a antiga ligação entre o shakuhachi e a religião.

De acordo com Malm (1959, p.152) o shakuhachi gagaku floresceu na maior parte do Período Heian (794 a 1185) e depois caiu em desuso. Uma das razões para o seu desaparecimento foi o surgimento, no período Muromachi (1333 a 1568), de um novo tipo de flauta, o hitoyogiri. Este instrumento tinha quatro furos na frente e um atrás e era capaz de produzir as escalas da música folclórica japonesa, diferente do shakuhachi gagaku que produzia a escala pentatônica chinesa.

Idade Média

Durante a Idade Média surgiu um tipo de flauta com cinco furos e que posteriormente se desenvolveu de formas distintas dando origem ao hitoyogiri, tenpuku e shakuhachi fuke. Nesse período o shakuhachi foi usado por artistas de sarugaku (drama popular que mais tarde evolui para o teatro noh), usado como acompanhamento de soga (estilo de canção e dança) e por monges cegos.

O elo entre o shakuhachi e a religião evidencia-se por meio de personagens, como por exemplo, o sacerdote Ikkyu (1394 a 1482), que viveu em um período de florescimento do budismo Zen na capital de Kyoto. Ikkyu fez parte da seita Rinzai, que mais tarde tem como uma de suas ramificações a seita Fuke, e tocou shakuhachi.  Um outro famoso personagem é o monge Roan a quem se atribui a introdução do shakuhachi hitoyogiri no Japão, trazido do exterior. No entanto, apesar de que não há nenhuma prova documental, e ao que tudo indica a história da importação do hitoyogiri feita por Roan é na verdade apenas uma fábula, esse fato nos mostra a ligação entre o shakuhachi e os monges budistas.
              
Tenpuku

O tenpuku é considerado uma espécie de shakuhachi, pois também é feito de bambu e possui cinco furos, embora o corte do seu bocal seja um pouco diferente. Normalmente, é fabricado pelo próprio tocador, a partir de uma única peça de bambu com três nós. Visualmente, a distância entre os furos parece equilibrada, mas, no entanto, é estabelecida com base no tamanho da mão do fabricante e da posição dos nós do bambu, e não com base em proporções acústicas. Por esse motivo nem sempre são bem afinados (KAMISANGO, 1988, p. 69,84,85). Seu cumprimento é de aproximadamente 30 cm, sua circunferência é de 7 a 8 cm e os orifícios dos dedos são menores até mesmo que os do hitoyogiri.

Floresceu entre os séculos XII e XV em Satsuma (atual Kagoshima) nas Ilhas Kyushu, e nos dias atuais alguns instrumentistas ainda mantém a tradição de tocar tenpuku nessa região.

O tenpuku foi muito popular entre os samurais e atingiu seu zénite na segunda metade do século XVI. Existe uma lenda que diz que durante a batalha de Sekigahara (1600), o general Tokugawa capturou Kitahara Bizen No Kami de um clã inimigo e tinha a intenção de executá-lo. No entanto, o prisioneiro tocou seu tenpuku de forma belíssima, como um lamento pela sua morte, e o general o perdoou.
    
Hitoyogiri

O instrumento tinha cinco furos e seu tamanho era variável, embora o oshiki (33,6 cm) foi o mais usado. Sua construção era feita com uma parte do bambu de apenas um nó (hito: um, yo: nó, giri: cortar).
      
Algumas lendas, como a de Roan, dizem que o hitoyogiri é procedente da China ou do sudoeste da Ásia, mas tudo o que se pode saber é que durante o Período Muromachi (1333 a 1568) surgiram monges mendicantes que tocavam este instrumento no Japão. Estes monges eram chamados de komoso e foram os predecessores dos famosos komuso. Além dos monges, os samurais de classe mais baixa e os comerciantes foram apreciadores do hitoyogiri.

Em meados do século XVI houve um grande interesse pelo hitoyogiri, comprovado por meio da existência de alguns tratados e peças da época. No início do Período Edo (1600 a 1868) o instrumento prosperou, impulsionado por certa liberdade artística característica da época, que proporcionou terreno fértil aos músicos. Existiam então duas escolas de hitoyogiri (Sokun e Seijitsu) e havia uma diferenciação entre as peças solo te (chamadas agora de honkyoku) e a música para koto, shamisen e hitoyogiri denominadas rankyoku (conhecidas atualmente como gaikyoku).

Apesar de toda sua popularidade, tinha algumas restrições técnicas. Devido ao pequeno tamanho do tubo (cerca de 10 cm de circunferência) e consequentemente da borda do bocal, era muito difícil o uso da técnica meri kari (abaixar ou subir a afinação). Também eram pequenos os orifícios, o que dificultava a técnica de usar os dedos para tapar parcialmente os furos. Esses recursos são essenciais para a execução de peças do repertório moderno e tradicional do shakuhachi.

Em meados do século XVIII o gosto pelo hitoyogiri foi decaindo, e no século XIX o instrumento chegou ao desuso, devido às suas restrições técnicas, apesar de uma tentativa dedicada de restaurar sua tradição por parte de alguns entusiastas.

Período Edo: palco para a ascensão do shakuhachi fuke

Entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII ocorreram mudanças significativas na arte japonesa. O shakuhachi fuke (o mais próximo do moderno) emergia; o shamisen, trazido das ilhas Ryukyu (Okinawa) por volta de 1560, passou a ser usado nas narrativas joruri, no teatro bunraku, e nas danças kabuki, ganhando muita popularidade; ocorriam mudanças no estilo de tocar koto, que também ganhou maior apreciação e passou a ser tocado juntamente com o shamisen. 

A escala miyako bushi começou a ser utilizada amplamente ao invés da escala ritsu, pois traduzia melhor os sentimentos do Período Edo. Esse fato gerou significativas transformações no panorama musical da época. O koto, shamisen, biwa e shakuhachi fuke foram os instrumentos mais adequados para tocar a nova escala, mas não se pode dizer o mesmo do hitoyogiri.

Enquanto o hitoyogiri entrava em desuso no Período Edo, o shakuhachi fuke prosperava por ter maior âmbito de notas, versatilidade e ser mais adequado do que o hitoyogiri para tocar a escala miyako bushi. Além disso, o shakuhachi fuke pode tocar qualquer tipo de escala, pois possui orifícios e bocal maior, permitindo as técnicas de tapar parcialmente os furos e a técnica meri kari.

Além dos motivos técnicos, ainda existem razões de conjunção histórica e religiosa para o surgimento e ascensão da flauta fuke. Sanford (1977, p. 428) salienta que esse shakuhachi apareceu por volta de 1600 e predominou até o século XX, e cita duas hipóteses para explicar o porquê da evolução na construção e utilização do instrumento por monges budistas. A primeira delas é a de que existiam ronin infiltrados entre os monges komuso e que utilizavam o instrumento como arma, pois este era maior e sua extremidade era feita a partir da raiz do bambu. A segunda explicação é que havia a necessidade de dissociar o novo tipo de monge komuso que tocava shakuhachi fuke, oriundo de classes mais altas, dos antigos mendicantes komoso, de classe mais baixa e que tocavam hitoyogiri. Maiores detalhes sobre a seita Fuke, os komuso e os ronin veremos nas seções a seguir.    

A nova estrutura do instrumento

O shakuhachi fuke se diferencia do seu antecessor em vários aspectos estruturais. Seu corpo de bambu passou a ter mais nós e a ser fabricado a partir da raiz, e seu cumprimento passou a ser maior, medindo um shaku (cerca de 30 cm) e oito sun (cada sun corresponde a 3 cm), ou seja, 1.8 ou 54 cm aproximadamente. A utilização da raiz na extremidade oposta ao bocal, uma novidade na história do instrumento, possui uma explicação acústica: funciona como campânula.

Além disso, essas mudanças estruturais tiveram um outro objetivo. O shakuhachi fuke foi utilizado como porrete por criminosos e samurais que não tinham permissão para portar espadas, surgindo inclusive o termo “kenka shakuhachi ou “combate shakuhachi” . Esta é uma explicação muito curiosa e particular que nos chama a atenção, e Malm (1959, p.157) conclui que talvez seja o único exemplo na história da música em que a necessidade de auto defesa foi um fator importante na modificação da construção de um instrumento musical.

A seita Fuke

A explicação para o fenômeno kenka shakuhachi e o crescente número de monges tocadores errantes que existiam nos primórdios do Período Edo está na própria sociedade da época. No início do século XVII o governo militar Tokugawa consolidou seu poder sobre a maior parte do país, após derrotar clãs e lordes. Inúmeros guerreiros profissionais vencidos, oriundos de classes sociais altas, tornaram-se “samurais sem mestres” (ronin) e perderam seus propósitos de vida. Consequentemente esses ronin buscaram outro caminho a seguir, sendo que alguns partiram para a criminalidade atuando como ladrões, enquanto outros encontraram apelo na vida religiosa, como monges.

Nesse período era crescente o número de monges komuso, nome de inspiração Zen que significa “sacerdote do vazio”, diferente dos komoso, cujo significado é “sacerdote esteira de palha”. Os komuso receberam privilégios especiais do governo, como livre acesso às estradas e rios para realizar peregrinações e pedir donativos (nesse período era preciso autorização especial para transitar pelo país). Além disso, desfrutavam de liberdade da interferência das leis locais por onde passavam, mantinham monopólio sobre o uso do shakuhachi e direito de usar o chapéu tengai, que cobria todo o rosto e garantia o anonimato.

Normalmente esses monges andavam com o chapéu tengai, vestidos com uma roupa preta chamada kesa e com o shakuhachi. Estes três acessórios ficaram conhecidos como “três instrumentos” (sangu). Já a autorização komuso (honsoku), o cartão de identificação (ein) e a permissão de viagem, foram chamados de “três selos” (san in).
 
Os ronin encontraram apelo na vida como komuso porque esta oferecia opções que correspondiam aos seus interesses, como a mendicância, a espiritualidade e a criminalidade. Por meio da mendicância religiosa, respeitada pela sociedade da época, alguns desses “samurais sem mestres” evitaram viver de forma humilhante. Outros conseguiram conforto na busca sincera pela iluminação espiritual. E havia aqueles mais inclinados a extorquir donativos.
            
Durante a maior parte do Período Edo, o shakuhachi foi utilizado como ferramenta religiosa (hoki), e não foi considerado um instrumento musical. Isso ocorria porque além do fato de que os komuso tocavam o shakuhachi em suas peregrinações em troca de esmolas, também se dedicavam ao suizen, uma prática religiosa que consistia em meditar soprando o shakuhachi. Ser concebido como ferramenta religiosa e não como instrumento musical é mais uma das particularidades relevantes na fascinante história desta flauta japonesa.

Posteriormente os monges komuso se organizaram no que ficou conhecido como seita Fuke, uma divisão da ramificação Rinzai do Budismo Zen. As origens dessa seita são obscuras, permeadas por diversos mitos e fatos sem fundamentos históricos. Dentre estes fatos, consta que a seita tem origem na China durante a Dinastia Tang, mas, no entanto, Kamisango (1988, p. 97) afirma que, a Fuke surgiu no Japão e se estabeleceu formalmente somente no século XVIII.   
            
A fundação da Fuke consta no documento Keicho no Okitegaki, um decreto do governo datado da primeira década do século XVII. Neste documento constavam os direitos e deveres dos membros da seita, bem como uma lista de privilégios especiais que poderiam usufruir. No entanto, o documento original nunca foi encontrado e existiam apenas cópias, cujo conteúdo de cada uma delas não era exatamente o mesmo. Embora o governo desconfiasse das falsificações, resolveu aceitar o decreto como legítimo, pois assim poderia manter o número crescente de ronin controlados pela seita. Ao mesmo tempo, os membros da seita desfrutavam os privilégios concedidos pelo governo.
            
Durante os primeiros oitenta anos, os komuso foram bem organizados, mas posteriormente as regras e disciplinas dentro dos templos foram decaindo.  Concomitantemente, o governo, após mais de cem anos de paz, também perdeu o vigor e a energia, embora continuasse totalitário. Nesse novo período de relativa estabilidade, o governo já não precisava do serviço dos espiões que havia dentro da Fuke. Além disso, uma diretiva emitida em 1774 apontava que havia komuso que estava extorquindo e ameaçando moradores e poderiam ser presos por atos ilegais. Esse fato demonstra o descontentamento do governo com a seita.

Neste ínterim houve uma tentativa de restauração da Fuke, mas seu fim seria inevitável. Em 1847 o governo anunciou que estavam proibidos os privilégios especiais concedidos aos komuso, gerando grande impacto na decadência final do grupo. Apesar da tentativa de renascimento, a vida da seita foi se arrastando até chegar ao seu fim na Reforma Meiji. Em outubro de 1871 o novo governo Meiji emitiu um decreto oficial abolindo por completo a seita Fuke.
            
De acordo com LEE (1992), a duradoura influência da filosofia e estilo de vida Fuke persiste até os dias de hoje entre os tocadores de shakuhachi, principalmente na tradição ligada ao repertório honkyoku.

O ensino do shakuhachi durante a existência da Fuke

Dentro dos templos, o ensino do instrumento, denominado fuki awase (“tocar junto”), ocorria pela transmissão do conhecimento dos mais velhos para os novatos. Embora houvesse o termo sobre o monopólio do shakuhachi pelos komuso, com o passar do tempo, as restrições da seita Fuke foram relaxando e surgiram moradores das vilas e homens leigos da sociedade que tocavam o instrumento. O aprendizado do shakuhachi fora dos templos foi chamado de fuki awase sho.

Os próprios monges se envolveram no ensino do shakuhachi para os leigos, e alguns templos se aproveitaram disso como uma forma de renda. Fontes literárias e pinturas da época revelam que estava se ampliando a prática de tocar shakuhachi como instrumento secular e não como ferramenta religiosa, inclusive em conjuntos musicais juntamente com koto e shamisen. Kurosawa Kohachi, filho do criador do estilo Kinko, teve seu próprio estúdio onde ensinava shakuhachi.
    
Surgimento da Kinko Ryu

No século XVIII foi atribuido a Kurosawa Kinko (1710 a 1771), um monge Fuke, a resposabilidade de cuidar do ensino do shakuhachi nos templos localizados em Edo. Nascido em Furoda, nas ilhas Kyushu, e descendente de uma família de samurais, Kurosawa não apenas cuidou do aprendizado do instrumento, como também viajou por todo o Japão recolhendo e organizando as peças Fuke. Kinko fez a notação e arranjo dessas peças, conferindo a elas maior elegância e musicalidade, em contraste com um caráter mais etéro do Myoan. 

O estilo criado por Kurosawa era transmitido através de gerações da sua própria família. Como Kinko III (1772 a 1816) não teve filhos, deixou seus ensinamentos para seu irmão mais novo que, no entanto, desistiu do shakuhachi, interrompendo a linha hereditária. Nesse momento o samurai Hisamatsu Fuyo, discípulo de Kinko III, tornou-se então o iemoto líder da linhagem e deu continuidade ao estilo. Hisamatsu manteve os aspectos da disciplina Zen intrínseca à tradição, mas ao invés de insistir que o shakuhachi era uma  ferramenta ritual (hoki), salientou sua importância como instrumento musical (gakki), dando um direcionamento artístico à flauta.

A idéia de “Estilo Kinko” não ocorreu durante a existência do seu fundador. Foi apenas a partir de Kinko II que houve a necessidade de se usar este termo para fazer as devidas diferenciações com o “Estilo Ikkan”, que começava a ser criado por Miyaji Ikkan, um dos melhores discípulos de Kinko.

Yoshida Itcho (1812 a 1881) e Araki Kodo (1832 a 1908) lideraram a transmissão do estilo após a morte de Hisamatsu. Eles viveram durante o período da Reforma Meiji, presenciaram a extinsão da Fuke e o crescimento da escola Kinko. Após a abolição da seita, Yoshida e Araki convenceram o governo de que sua intensão de proibir o uso do shakuhachi era desnecessária e defenderam o instrumento contra acusações e inquéritos.

Atualmente a linhagem Kinko não se restringe apenas ao Japão, pois está presente em diversos países do mundo, inclusive no Brasil. No ano de 1956 o iemoto Iwami Baikyoku Tsuna muda-se para a cidade de São Paulo, onde residiu até seu falecimento em 2012. Desde sua chegada em terras brasileiras dedicou-se à divulgação do shakuhachi, apresentações públicas, composição e ao ensino do instrumento. 

Shakuhachi moderno e o surgimento de inúmeras escolas

A transmissão da tradição do shakuhachi do final do século XIX até a atualidade, tem ocorrido por meio de instituições que se proliferaram após a quebra do monopólio da seita Fuke.  Essas instituições são designadas por alguns termos, como ryu (“escola”), ha (“facção”), kai (“organização”) e sha (“empresa”), por exemplo, Tozan Ryu, Kinko Ryu e Taizan Ha.

A abolição da seita Fuke em 1871 e a consequente transformação de ferramenta religiosa para instrumento artístico, marca o início do nascimento do shakuhachi moderno. Embora existam inúmeras escolas atualmente, elas se dividem em duas grandes correntes. Uma delas é chamada Myoan e está ligada às tradições herdadas da Fuke, com o espírito do suizen. E a outra corrente se concentra nos aspectos musicais do shakuhachi, e se divide em várias escolas, como por exemplo, a Kinko Ryu e a Tozan Ryu.

Tecnicamente também ocorreram mudanças na fabricação do instrumento. Observando pelo lado de fora, o shakuhachi fuke e o contemporâneo não possuem significativas diferenças visuais. No entanto, olhando o interior da flauta, a diferença é clara. Os nós internos do shakuhachi fuke não são removidos completamente, dificultando a produção do som. Já no shakuhachi moderno os nós são removidos por completo e no interior do tubo é aplicado uma pintura feita com uma mistura de tonoko, laca e água. A essa mistura e aplicação no interior do tubo dá-se o nome de jinuri, sendo que “ji” se refere ao material usado. Por esse motivo, o shakuahchi contemporâneo é conhecido como jinuri shakuhachi. Como resultado dessa modificação, o instrumento ganhou mais volume sonoro por vibrar bastante, passou a ter um som mais estável e aumentou sua gama de notas, igualando-se à flauta ocidental. Então, além de tocar nos registros otsu (primeira oitava) e kan (segunda oitava), ganhou o registro daikan on. Embora a música tradicional não faça uso deste registro, ele é explorado em composições contemporâneas.    

Ocidentalização do Japão e a Tozan Ryu

A partir do Período Meiji (1868 a 1912) o Japão iniciou um processo de ocidentalização de sua cultura. Assim como no passado o país importou a cultura vinda da China, a partir de 1868 abre suas portas para o ocidente.

Nakao Tozan (1876 a 1956) nasceu em Osaka e aos dezessete anos tornou-se um komuso. Dois anos após, em 1896, abriu seu próprio estúdio para ensinar shakuhachi. Esse fato é considerado como a fundação da Tozan Ryu. O shakuhachi se popularizou com sucesso pelas mãos de Nakao, devido à sua capacidade de inovação, principalmente na região de Kansai. Em 1922, Tozan muda-se para Tóquio, onde une suas forças com o grande tocador de koto e compositor Michio Miyagi.

Nesse período houve um grande interesse dos japoneses pela música do ocidente e a escola Tozan é um reflexo dessa influência. A música e a notação Tozan Ryu tiveram inspiração ocidental. Nakao promoveu o shakuhachi na música de câmara gaikyoku e também em conjunto com violino e piano. Além disso, compôs peças novas que chamou de honkyoku, seja para shakuhachi solo, duetos ou trios, embora esse repertório tenha como base o ponto de vista musical e não uma inspiração a partir do suizen. Atualmente, a Tozan Ryu é a maior escola do Japão.

No Brasil há muitos adeptos da Tozan Ryu, tanto na capital de São Paulo como em cidades do interior, por exemplo, Campinas. A filial da Tozan Ryu do Brasil foi fundada na década de 1960 pelo imigrante Miyoshi Juzan e seus alunos. 

Conclusões

A flauta, trazida ao Japão por meio da China no século VII, atualmente encontra-se em diversas partes do planeta, ou seja, primeiro caminhou do oeste para o leste e posteriormente fez o movimento oposto, do leste para o restante do mundo.

Em seus primórdios no Japão foi apenas um instrumento secular, ligado à música da corte. Em seguida começaram a surgir, aos poucos, monges utilizado o shakuhachi. Esse movimento tomou grandes proporções até chegar ao ponto de transformar a flauta de bambu em uma ferramenta religiosa, monopolizada pela seita dos komuso, deixando de lado seus aspectos artísticos.

Sua força expressiva encontrou correspondência no gosto popular, e nos últimos tempos da seita Fuke foi inevitável que os moradores leigos das vilas passassem a tocar essa flauta. Para evitar seu fim durante a Reforma Meiji, o shakuhachi voltou a ser o que foi em princípio: um instrumento musical.

Durante a realização do trabalho de pesquisa “Levantamento histórico e análise técnica da flauta japonesa shakuhachi”, desenvolvido no Instituto de Artes da Unicamp, com financiamento da Fapesp, cujas informações foram obtidas por meio de levantamento bibliográfico e trabalho de campo, observamos que o shakuhachi, trazido por imigrantes japoneses ao Brasil, conquistou também amantes entre os não descendentes de japoneses. 

Existem no Brasil tocadores representantes de diferentes estilos (Kinko Ryu, Tozan Ryu, Meian Ryu, etc.), que realizam concertos e palestras a respeito desta flauta de bambu e da música japonesa.

Atualmente presenciamos todos os tipos de concepções a respeito do shakuhachi no mundo. Existem pessoas utilizando-o em práticas espirituais, enquanto outras apenas fazem arte. Está presente em diversas formas de música, da popular à clássica, da música oriental à ocidental, da folclórica à eletrônica; enfim, em formas inimagináveis.

Isso demonstra seu aspecto versátil, que após sobreviver a uma história milenar, mesmo à custa de inúmeras modificações estruturais, conquistou o gosto e a apreciação de incontáveis apaixonados ao redor do planeta. Talvez isso ocorra por ser uma flauta que se adaptou ao mundo moderno e pós-moderno, ou talvez o shakuhachi consiga evocar nos corações humanos algo intrínseco à sua natureza, de caráter tão primitivo e ao mesmo tempo tão presente.

Referências Bibliográficas

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